terça-feira, 25 de outubro de 2011

Considerações do Fórum Permanente de Educação Infantil do Estado do Rio de Janeiro – FPEI/RJ sobre o processo de avaliação da Cidade do Rio de Janeiro

Um tema que já estava em discussão no FPEI/RJ ganhou repercussão nacional a partir da reportagem de Clarissa Thomé (O Estado de S. Paulo, 03 de outubro de 2011), com o título: Pesquisa avalia evolução de aluno de creche no Rio. Tal avaliação refere-se à aplicação do questionário ASQ-3 (Ages & Stages Questionnaires), que foi utilizado pela Secretaria Municipal de Educação do município do Rio de Janeiro para avaliar as crianças de dois meses a cinco anos e meio de idade em todas a rede de educação infantil pública e conveniada.
De acordo com o Manual de uso do ASQ-3: guia rápido para aplicação do ASQ-3 (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; Iets – Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, 2010), o ASQ-3 “[...] foi desenvolvido em 1997 nos Estados Unidos. Desde então, vem sendo utilizado em diversos países, como os Estados Unidos, França, Espanha, Dinamarca, Noruega, Quênia, Zâmbia, China e Coréia. Na América do Sul, Chile e Equador validaram o instrumento para avaliar o desenvolvimento de suas crianças” (p. 6). Segundo o Manual, o ASQ-3 é composto por 21questionários distintos, um para cada intervalo de idade. Desses questionários, 19 são destinados às crianças com menos de quatro anos e apenas dois são voltados para as crianças com idade entre quatro e cinco anos e meio. Todos os questionários têm a mesma estrutura: são formados por cinco blocos, um para cada domínio avaliado do desenvolvimento: comunicação, coordenação motora ampla, coordenação motora final, resolução de problemas e pessoal/social. Cada bloco por sua vez é composto por seis perguntas, totalizando 30 perguntas em um questionário. Existe ainda um sexto bloco o qual investiga “informações adicionais” sobre a criança. O objetivo é fazer a triagem de crianças que deveriam ser encaminhadas para avaliação mais cuidadosa seja pela possibilidade de diagnóstico de problemas crônicos de saúde ou por necessidades especiais.
Diante da profusão de considerações geradas no processo de discussão da Rede Nacional Primeira Infância, Maria Thereza Oliva Marcilio (Avante- Educação e Mobilização Social; Coordenadora da Secretaria Executiva da RNPI) nos traz algumas questões que podem qualificar o debate: qual a concepção de desenvolvimento humano que está guiando a metodologia de avaliar capacidades da criança? Como estabelecer indicadores de desenvolvimento infantil sem considerar contextos de iniquidade? Como considerar padrão um contexto cultural absolutamente diverso, EUA x Brasil? Como conciliar o conceito de diversidade e o de inclusão, expressos em diretrizes e normas de educação no país, com a ideia de avaliar habilidades e estabelecer indicadores de desenvolvimento padrão?
Outro dado que queremos trazer para o debate é o déficit de vagas em creches no município do Rio de Janeiro, que segundo levantamento realizado tendo por base os dados oficiais do Censo Demográfico (IBGE, 2010) e do Censo Escolar (Educacenso – MEC/Inep, 2010), o município atende apenas 26,41% das crianças de 0 a 3 anos de idade, sendo apenas 11,64% do atendimento feito diretamente pela Prefeitura. Esse fato é reconhecido pelo próprio Manual citado acima, onde temos que “[...] a oferta atual de vagas em creches públicas e conveniadas ainda não atende a totalidade da nossa demanda” (p. 3). Quando menciona a estratégia de expansão de vagas, dá ênfase a “construção de novos espaços de atendimento”, ou seja, ao invés de novas “creches” relata sobre a oferta de vagas no programa “Primeira Infância Completa – PIC”, “que atende aos sábados, em horário integral, as crianças que não conseguiram se matricular na creche regular” (p. 3, grifos nossos), sem contar com a criação de “Espaços de Desenvolvimento Infantil – EDIs”, para os quais são utilizados funcionários sem a formação mínima exigida pela legislação (“agentes auxiliares de creches municipais”).
O conteúdo deste instrumento possui uma relação direta com a forma como foi implementado: de maneira vertical, sem debate com o conjunto dos educadores e coordenadores, numa perspectiva de “adestramento” dos educadores para responderem aos questionários. Articula-se a uma lógica que privilegia resultados, quantificação e padronização do desenvolvimento das crianças desconsiderando a sua singularidade e historicidade. Responde, a uma concepção de educação infantil que é burocratizada, tecnificada, despolitizada e completamente descontextualizada de todos os avanços e debates que construímos nos últimos anos no campo, sobretudo os que deram direção à organização das diretrizes curriculares.
Qualquer proposta de avaliação parte de pressupostos teóricos, éticos e políticos. Envolve a materialidade dos processos educativos, suas condições de produção e seus destinatários (os educadores, as crianças e suas famílias). Envolve, portanto, sujeitos que vivem em condições desiguais, que possuem múltiplas e variadas relações sociais e enfrentam diferentes dispositivos sociais de existência social. Envolve processos de pactuação, de debate e de consensos em torno do que é importante avaliar, para quê e para quem. Supõe uma concepção de educação que se antecipa nos instrumentos através dos quais ela é proposta: o currículo, os processos dinâmicos da produção do conhecimento, a gestão, avaliação, dentre outros.
A avaliação proposta pelo instrumento ASQ-3 dá ênfase a aspectos “quantificáveis” do que concebem como “desenvolvimento infantil”. Partem de uma determinada leitura teórica deste desenvolvimento, e do pressuposto de que há um “desenvolvimento esperado” para todas as crianças.
Ao educador, alienado da sua capacidade crítica e da sua autoria como sujeito do processo avaliativo, cabe o preenchimento automático das “respostas” dadas pelas crianças, para que os “especialistas e técnicos” da Secretaria de Educação possam aferir os “resultados”. Aqui, poderíamos pensar na velha apartação positivista entre os que “pensam” e os que trabalham; apartação que conserva o poder nas mãos dos que se apresentam como detentores do saber e, com isto, permite que as relações desiguais de educação sejam reproduzidas naturalizando-se a ideia de que há os mais “aptos” e os “diferentes”.
Em relação à aplicação do questionário as críticas do FPEI/RJ estão organizadas em dois eixos: a forma como tal instrumento foi imposto às creches e pré-escolas e o seu conteúdo.
Com relação à forma, a Secretaria e as Coordenadorias Regionais de Educação (CREs) ofereceram uma “capacitação” para os dirigentes e coordenadores das creches em que distribuíram um “manual de uso” com as orientações sobre o preenchimento do ASQ-3 e instruções sobre como responder “sim”, “não” e “às vezes”. Estas respostas deveriam ser dadas, conforme o quesito avaliado, pela quantidade de respostas “positivas” dadas pelas crianças; em alguns, a criança deveria responder pelo menos duas vezes, em outras três, e assim por diante. Outra orientação recebida é que somente seriam toleráveis duas respostas em branco por bloco e que o ideal seria não deixar nenhuma pergunta sem resposta, ou melhor, que não se deixasse de aferir os “resultados”.
Para dar uma ideia, para os que ainda não conhecem o conteúdo de tal questionário, reproduzimos algumas questões:

 Para o grupo de 2 meses há perguntas como:
Comunicação:
- O bebê algumas vezes faz barulho como se estivesse arranhando a garganta? Faz sons como "uuhh", “gahh” e “ahh”?
- Quando você fala com o bebê, ele faz sons de volta para você?
- O bebê ri suavemente?
- Depois de você ter saído da vista do bebê, ele sorri ou fica animado quando você volta?
 Para o grupo de 10 meses:
Pessoal/Social:
- Quando o bebê está deitado de barriga para cima ele coloca o pé na boca?
- O bebê toma água, suco ou leite em uma caneca, enquanto você segura a caneca? (não use caneca com tampa nem bico)
 Para o grupo de 27 meses:
Comunicação:
- Sem que você dê dicas à criança, apontando ou usando gestos, ela atende a pelo menos três dos comandos abaixo:
a) aponta o brinquedo na mesa;
b) feche a porta;
c) pegue uma bola para mim;
d) ache a sua mochila;
e) pegue a minha mão;
f) pegue um livro.
- Se você aponta uma figura (gato, cachorro, bola, sapato etc.) a criança nomeia pelo menos duas corretamente?
 Para o grupo de 42 meses:
- Usando exatamente estas palavras, pergunte a criança: você é um menino ou uma menina? A criança responde corretamente?
- A criança se serve tirando comida de um recipiente para outro usando talheres? Por exemplo, ela utiliza uma colher grande para pegar comida da travessa e colocar no prato?
 Para a criança de 60 meses:
- A criança informa pelo menos quatro dos seguintes dados pessoais? Marque os itens que ela sabe:
Nome:
Idade:
Cidade onde mora:
Sobrenome:
Se é menino ou menina:
Número de telefone:

E assim por diante...

O ASQ 3 responde, assim, a uma alógica completamente estranha ao que o conjunto dos educadores e especialistas acumulou de debate nos últimos anos e sua implantação revela os tempos sombrios da educação infantil em nosso município. O ASQ pode ser um perigoso instrumento de retorno de velhas práticas de olhar para a criança a partir de um modelo “ideal” de desenvolvimento.
Diante do exposto, consideramos que este processo se apresenta sem nenhuma legitimidade política. Desta forma, reivindicamos que o mesmo seja imediatamente suspenso e que os educadores, pesquisadores e especialistas possam ser ouvidos e que a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro compareça ao debate que o Fórum está organizando.

Rio de Janeiro, 21 de outubro de 2011.


Coordenação Colegiada do
Fórum Permanente de Educação Infantil do Estado do Rio de Janeiro

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